Todo heroísmo será castigado

Depois de evitar uma tragédia ainda maior na pandemia, um SUS sub-financiado terá que cuidar da demanda reprimida de outras doenças, além de acolher aqueles que a crise expulsou dos planos de saúde. Leia no artigo de Maria Cristina Fernandes*

No dia 24 de julho, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou que iria formar um grupo de trabalho, a ser comandado pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), para sistematizar propostas para um projeto sobre a modernização do Sistema Único de Saúde.

O que parecia uma ideia natural para tempos de pandemia, no único país com mais de 100 milhões de habitantes a liderar seu enfrentamento com um sistema de saúde público e universal, surpreendeu. Primeiro pelo distanciamento que o próprio deputado reconheceu manter em relação ao tema e pelo nome pinçado para coordenar os trabalhos.

Deputada de primeiro mandato, Margarete Coelho foi vice-governadora do Piauí na chapa de Wellington Dias (PT), e tem tido uma atuação marcada pelo debate sobre legislação penal e segurança pública. Não tem projetos de lei na área da Saúde e tampouco integra comissões ou frentes parlamentares da poderosa bancada temática da Casa. 

Foi indicada por uma das principais lideranças do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), cuja pré-candidatura ao governo do Estado o torna um aliado cada vez mais inarredável do bolsonarismo.

O anúncio de Maia também coincidiu com as tratativas para que outro deputado do PP, Ricardo Barros (PR), assumisse a liderança do governo na Casa. Ex-ministro da Saúde no governo Michel Temer, Barros foi o único, na história recente da Pasta, a comandá-la em desalinho com o chamado “partido sanitarista”, agrupamento multipartidário de defensores do SUS.

De volta à Câmara, Barros se notabilizou pela obsessão em viabilizar os “planos acessíveis” de saúde, iniciativa que se revelou uma tentativa de aumentar a base de usuários desregulamentando as obrigações das operadoras.

E, finalmente, a disposição de Maia em entrar no tema coincidiu com o pico do seu antagonismo com a principal liderança do PP da Câmara, o deputado Arthur Lira (AL), candidato declarado à presidência da Casa que tem buscado firmar o apoio do Executivo à sua pretensão.

Motivos não faltam, portanto, para o presidente da Câmara buscar protagonismo na discussão do tema. Na véspera do anúncio do grupo de trabalho, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, correligionário de Maia, disse que poderia se lançar à Presidência em 2022. Ainda que não vingue, sinaliza um ativo do DEM, nacionalmente conhecido, a reivindicar a bandeira que é disputada pelo partido que mais ameaça a liderança de Maia na Câmara.

Ao colocar uma parlamentar do PP para comandar uma comissão cujos resultados dependem de sua iniciativa como dono da pauta, mantém rédea curta sobre a atuação do partido numa área-chave para seu futuro.

Foi sob pressão de Maia, que ameaçou colocar em pauta de votação e aprovar um projeto de lei para suspender reajustes dos planos de saúde, que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) os suspendeu por 120 dias, a partir de 21 de agosto. Foi um freio no lobby que, no Congresso, é capturado pelo PP.

As empresas do setor, de acordo com o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), registraram em maio o índice de sinistralidade mais baixo da série que o acompanha. Ou seja, pressionam por reajustes apesar de menos requisitados pelos consumidores. Nota técnica do Ipea, de maio, registra que, entre 2000 e 2018, a inflação dos planos foi de 382%, ante 208% da inflação. Tanto a Bradesco Saúde quanto a SulAmérica, duas gigantes do setor, tiveram, ao longo do primeiro semestre, aumento de receita no primeiro semestre de 2020 (Valor, 27/8).

A pressão por reajuste parece ser um movimento preventivo em relação à demanda reprimida por procedimentos eletivos, de diagnósticos e tratamentos de câncer a intervenções cardíacas.

Além da tendência de elevação do número de mortes por câncer e cardiopatias em relação a 2019, os dados sinalizam que, mais do que os planos de saúde, é o SUS que ficará mais estrangulado pela sobrecarga. Além da demanda reprimida de seus usuários, o Sistema Público de Saúde herdará aqueles que a crise econômica empurrou para fora dos planos nos últimos meses. Segundo a ANS, 327 mil usuários deixaram os planos de saúde entre março e julho.

Esses usuários vão pressionar um sistema que, no próximo ano, sem o chamado “Orçamento de guerra”, que suspendeu as travas fiscais, terá seu financiamento novamente estrangulado. O Orçamento de 2021 enviado ao Congresso esta semana tem uma redução de 12% nas despesas não obrigatórias, que é justamente o espaço onde se pode abrigar a campanha de vacinação da covid-19, além do investimento para se atender a demanda reprimida do sistema e seus novos usuários. Força o SUS a fazer mais com menos.

Some-se a isso a expansão da capacidade instalada de leitos – mais de 9 mil só de UTIs – durante a pandemia que também pressionará os custos do sistema.

O enfoque “hospitalocêntrico”, como diz a procuradora do Ministério Público de Contas, Élida Graziane, foi decorrência dos efeitos do arrocho fiscal sobre a atenção primária. Antes da pandemia, o país já estava sendo obrigado a lidar com volta de doenças como sarampo e febre amarela.

Foi o desmonte das equipes de saúde da família, diz Élida, que impediu uma orientação maciça em relação a hábitos de higiene, uso de máscaras e isolamento social – medidas que poderiam ter contido a expansão da pandemia. Foi a atuação dessas equipes que marcou a saúde pública em países mais bem-sucedidos no combate à pandemia, como a Alemanha.

Some-se a exposição dos mais carentes à doença, pela dificuldade do isolamento social, à sua dependência de um sistema desaparelhado e está explicada a desigualdade exposta pelas estatísticas da pandemia. Mais de 60% das vítimas da covid-19 são negros e pardos, população que, no IBGE, corresponde a 56% dos brasileiros.

A despeito do desmonte na atenção básica, é unânime a percepção de que, não fosse o Sistema Único de Saúde, o Brasil, que se mantém invicto, há mais de dois meses, na segunda colocação em número de óbitos no mundo, poderia ter ultrapassado os Estados Unidos. Ao longo da pandemia, o SUS tem sido o maior partido de oposição, pelo papel na redução de danos provocados pelo negacionismo do presidente da República.

O cenário pós-pandemia, porém, indica que o SUS não apenas não será premiado pelas vidas salvas como corre o risco de ser castigado. Não há sinais de que a economia – e a arrecadação fiscal – reajam na velocidade necessária para manter a capacidade de o sistema atender à demanda reprimida pela pandemia.

Tampouco há uma mobilização, como aconteceu na educação com o Fundeb, para impedir o esvaziamento do SUS. Em grande parte porque, ao contrário da educação, as empresas privadas dependem, e muito, dos recursos destinados ao setor. Hoje, segundo cálculos de Élida Graziane, as renúncias fiscais chegam a 40% do orçamento do Ministério da Saúde.

Sem os recursos extras proporcionados pela suspensão das travas fiscais e com a pressão da demanda reprimida, aumentará a disputa pelo orçamento. “O SUS vai encolher”, aposta o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Mário Scheffer.

Um exemplo da força das empresas privadas na pandemia foi a pressão bem-sucedida sobre a ANS contra a chamada “fila única” de atendimento. O procedimento, adotado em muitos países, consiste em gerenciar, por um único sistema, as vagas em UTIs dos setores público e privado, para evitar que um sistema acumule filas enquanto o outro disponha de capacidade ociosa. Um estudo conduzido por pesquisadores de quatro instituições (FGV, USP, UFPB e Instituto do Câncer) concluiu que a fila única teria poupado quase 15 mil vidas.

Unidos contra a fila única, planos de saúde e hospitais agora tendem a ficar em ringues separados na nova fronteira da saúde pós-pandemia, a telemedicina. Depois de ter seu uso expandido ao longo dos últimos meses, a medicina a distância será, em grande parte, a aposta dos planos de saúde para recuperar mercado a partir de modelagens mais baratas.

A julgar pelas reuniões da comissão de acompanhamento da covid-19, a única da Câmara a funcionar ininterruptamente desde o início da pandemia, o tema está longe de ser consensual – no setor privado e público.

Desde o início da pandemia, milhares de brasileiros deixaram de receber benefícios que dependem de perícia do INSS porque os médicos do instituto se recusam a fazer o serviço remotamente.

Bem regulada, a telemedicina, que vai além da consulta a distância, pode permitir o acesso dos pacientes a métodos diagnósticos inexistentes em seus municípios. Largada às leis de mercado, dá margem a teleconsultas a R$ 5.

Médicos temerosos do aviltamento do mercado de trabalho pressionam para que o atendimento tenha profissionais nas duas pontas, hospitais temem a remuneração de sua capacidade instalada e usuários receiam que, além da qualidade do atendimento, seja posta em risco a privacidade de seus dados.

Nenhum desses temores será capaz de barrar um mercado cuja estimativa, apresentada numa audiência pública sobre o tema na Câmara, chegará, apenas nos Estados Unidos, a US$ 64 bilhões até 2025. Como todo avanço tecnológico, a telemedicina também depende de um bom regramento para que seja instrumento de democratização do acesso à saúde. Na sua ausência, pode se transformar num caça-níqueis que pode vir a jogar sobre o SUS, cada vez mais desprovido de recursos, um número ainda maior de vítimas.

*Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor
Extraído de https://valor.globo.com/eu-e/coluna/maria-cristina-fernandes-o-castigo-ao-sus.ghtml em 04/09/2020]
Publicado em 08/09/2020