SUS: reformar é mesmo preciso?

Em artigo publicado no Boletim de Notícias Conjur, a advogada *Lenir Santos, esclarece a verdadeira intenção do debate sobre a reforma e modernização do SUS.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pretende reformar o SUS para modernizá-lo e vem conversando com terceiros sobre essa modernização [1], tendo escolhido a deputada federal Margarete Coelho para liderar esse processo.

A pergunta a ser feita é se reformar o SUS é preciso. O SUS precisa ser reformado para cumprir o seu desiderato constitucional de garantir, de modo efetivo e qualitativo, o direito à saúde? E se há diagnóstico e conhecimento qualificado dos que pretendem reformar o SUS quanto aos seus gargalos, suas insuficiências, que ensejam mais dois milhões de ações judiciais, a qualidade de seus serviços e o porquê de suas filas intermináveis [2].

Qualquer proposta de mudança no SUS deve começar por ouvir a população, os conselhos de saúde, os secretários de saúde, especialistas e profissionais do SUS sobre o porquê de um sistema moderno em suas bases constitucionais e legais ainda não logrou o sucesso merecido pela sua população usuária há 32 anos.

É preciso começar um vigoroso diagnóstico sanitário para então propor o que ele de fato precisa. Sem conhecer suas fragilidades e fortalezas não se pode pensar em promover mudanças legislativas. Aliás, uma mudança legislativa necessária para tirar o SUS das cordas é quanto ao seu financiamento porque não se faz saúde de qualidade com um gasto por volta de R$ 1,3 mil per capita ano [3].

O SUS da reforma sanitária e da Constituição, um retrato do federalismo cooperativo, fortemente tensionado nesta pandemia da Covid-19, nunca foi reconhecido como o que salva vidas neste país. A integração federativa das ações e serviços de saúde, alcançada pelas comissões intergestores tripartite e bipartite [4]; as diretrizes organizativas, que têm na descentralização o moderno princípio da subsidiariedade; o atendimento integral, visão holística da saúde; e a participação social, exercício da democracia direta, demonstram a sua atualidade estrutural.

Desde o nascimento do SUS, em 1988, o setor privado dele pode participar de forma complementar, havendo contratos, convênios, parcerias que requerem aperfeiçoamentos executivos, ou seja, maior competência pública para contratar, regulamentar e fiscalizar.

A Lei n. 8.080, de 1990, que regulamentou o SUS, poucos reparos merece, mas nada que leve à palavra reformar. O que precisa é ser cumprido o que até hoje não o foi. Há ajustes necessários pela passagem do tempo porque nada é perene.

Obviamente que a gestão pública do SUS é burocratizada, mas essa característica nefasta que impõe lentidão executiva, somada à visão patrimonialista que distorce as finalidades públicas e afasta a centralidade do cidadão, não advém de seu marco regulatório, mas, sim, da Administração Pública brasileira. Uma administração que até os dias de hoje não se preparou para viver na era do conhecimento, da informatização, do desenvolvimento biotecnológico e demais inovações, como o registro eletrônico em saúde interoperável; marcação de consulta à distância; telemedicina e telesaúde e outras inovações racionais e próprias desse século. O SUS ainda sustenta arcaísmos herdados da Administração Pública, cujo fim não depende de lei reformando-o porque as que o matriciam, exigem a sua modernização que até hoje não ocorreu. Basta ler e compreender o arcabouço normativo do SUS e ter a ousadia de cumpri-lo.

O SUS peca pelo descumprimento da lei; no quesito financiamento, que dá sustentabilidade à garantia do direito à saúde, desde a origem em 1988, não se cumpriu preceitos constitucionais, como o de alocar 30% do orçamento da seguridade social [5] para a saúde. Se o fosse, o orçamento federal da saúde não seria de R$ 125 bilhões (2020), mas, sim, de R$ 271 bilhões. O transitório que virou permanente, a DRU [6], prorrogada oito vezes e que de 20%, passou para 30%.

Hoje o financiamento do SUS está congelado nos valores de 2017, corrigido apenas pela variação do INPC-IBGE. Deixou de ser um valor móvel de 15% das receitas correntes líquidas para ser um valor fixo, somente alterado por uma correção que não retrata a verdadeira variação de preços no mercado da saúde, nem o crescimento e o envelhecimento populacional [7]. O subfinanciamento da saúde — R$ 3,60 per capita/dia, não o sustenta; a diminuição de leitos atingiu patamares elevados em dez anos. Para enfrentar o seu subfinanciamento é preciso revogar a EC 95 ou instituir uma disputa predatória no orçamento federal para saber quem vai perder e quem vai ganhar.

Outra norma nunca cumprida é a ordenação de recursos humanos que, na competência do SUS (artigo 200 da CF), em 32 anos, o sistema educacional não formou pessoal para a atenção primária em saúde, nem outras especialidades necessárias ao modelo assistencial do SUS. Tanto que a falta de médicos persiste, com o interregno do programa Mais Médicos, que conseguiu provê-los país afora, e extinto, não foi ainda executado o que o sucedeu.

A carreira no SUS em âmbito estadual e municipal, para atender local e regionalmente o SUS, sempre a espera; o mandamento constitucional de regionalizar a descentralização, criando regiões de saúde capazes de atender 90% da população regional, tem sido pouco resolutiva. As regiões existem mais como recortes geográficos do que como organização sanitária efetiva; sem um planejamento regional que desvele as realidades regionais, deem segurança jurídica aos entes federativos em suas responsabilidades sanitárias regionais e sejam resolutivas, não se estará cumprido esse mandamento constitucional.

A falta de carreira e salários dignos leva ao desestímulo, com mudanças constantes. O papel do MS, dirigente nacional, tem atuado muitas vezes mais como uma agência financiadora (política da cenoura e da vara), pautando os dirigentes subnacionais em razão do financiamento, sem atender as necessidades da população local e regional; a regulação do financiamento é tão minudente que conta com mais de dois mil artigos, sem falar de incisos e parágrafos e anexos [8]. Essas, sim, deveriam ser revistas em seus conteúdos porque a consolidação iniciada em 2016 não as alterou, por se tratar de consolidação de normas e não de sua revisão.

As relações público-privadas merecem revisitação e isso não depende de lei, mas, sim, de critérios administrativos e técnicos capazes de exigir e medir qualidade, eficiência, impor cláusulas contratuais que inibam a baixa qualidade dos serviços, priorizando investimento, treinamentos, fiscalização, e critérios para a melhoria da gestão. Não é lei, mas ato administrativo consequente.

As principais dificuldades do SUS não dependem de mudança em seu arcabouço jurídico, ainda que sempre seja admissível medidas de aperfeiçoamento, mas isso não pode ser configurado como revisão do ordenamento jurídico do SUS para melhorar a sua qualidade. Sem financiamento adequado não há gestão eficiente. Sem mudança na administração patrimonialista e burocratizada, não aderente ao planejamento, plano de saúde e rateio de recursos pautados em lei, não se alterará a gestão.

O rateio federativo dos recursos da União para os estados e dos estados para os municípios deve se pautar por critérios legais, mas até hoje não saiu do papel (são oito anos) [9], o que evitaria o uso clientelista, como sempre se denunciou; é preciso que as estruturas estaduais da região de saúde estadual sejam regulamentadas pelos estados; que se imponha o planejamento decenal da saúde em âmbito federal, projeto de lei que tramita há anos no Congresso Nacional; que as emendas parlamentares sejam obrigadas a cumprir o planejamento sanitário que aponte para os vazios assistenciais e a primazia nos investimentos para a sua superação; a necessidade de indicadores de qualidade, conforme determina a lei, não cumprida; definição de linha-base de qualidade para os serviços de saúde. O complexo produtivo da saúde, com planejamento e investimentos em ciência, tecnologia e informação. A dependência externa precisa ser superada.

De modo resumido, as pautas obrigatórias no SUS são: atuar sobre a insuficiência do financiamento e cumprir os critérios legais de rateio interfederativo; melhoria da gestão pública brasileira, incluindo a relação público-privada no SUS e a qualidade dos serviços; formação de profissionais para a saúde pública; tornar resolutiva a região de saúde; e atuar no desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação.

Nesse crepúsculo em que o mundo está mergulhado é ora de atuar em temas candentes na saúde como o protagonismo do país na governança global da saúde pelos riscos desta e de novas pandemias; as mortes evitáveis e as responsabilidades públicas; a terminalidade de vida; os direitos dos pacientes; patentes de medicamentos e vacinas [10]; as determinantes sociais da saúde e a crise do meio ambiente que interfere com condições de vida e a saúde.


[1] Os que devem ser ouvidos obrigatoriamente porque atuam o SUS e o compreendem de modo real, são os secretários de saúde municipais e estaduais, profissionais, especialistas de saúde; conselhos de saúde com suas representações sociais.

[2] A judicialização vem demonstrando que o SUS não atende às necessidades das pessoas, sendo mais de dois milhões de ações judiciais a pleitear algum serviço, produto, insumo, medicamento, o que já seria suficiente para levar os poderes executivos e legislativos a entenderem as suas causas e agirem para corrigi-las. E essas causas não são de provimento legislativo, mas sim de insuficiência de serviços.

[3] Artigo recente publicado na Folha de S. Paulo, da autoria de Marcos Mendes, que afirma ter o SUS aumentado em 9,5 bilhões os seus recursos em razão da EC 95, contém erros, tendo em vista que a ADI 9556, de 2016, manteve o percentual de 15% das RCL (liminar do ministro Lewandowski), devendo a conta incorrer sobre 15% das RCL de cada ano e não sobre o valor do ano de 2017 e assim sucessivamente nem sobre o valor percentual escalonado da EC 86. Consultar artigo dos economistas Francisco Funcia, Bruno Moretti e Carlos Ocké no Susconecta em 29 de julho de 2020 e pelos cálculos do Conselho Nacional de Saúde disponível em seu site e ainda www.idisa.org.br Painel Gilson Carvalho.

[4] As comissões intergestores foram criadas nos anos 90 e implementadas em 1993, por portaria do Ministério da Saúde e reconhecidas por lei em 2011.

[5] Artigo 35 do ADTC.

[6] Desvinculação de Recursos da União.

[7] A Qualicorp está reajustando os valores mensais de seus planos de saúde que administra pelo índice de 14,6%, enquanto o índice de inflação de 2019 foi de 4,48% e a projeção do índice de inflação para 2020 deve ser negativo. O valor do piso da saúde pública para 2019 teve alteração em acordo ao INPC-IBGE.

[8] Em 2016 o Ministério da Saúde na gestão do ministro Marcelo Castro deu início a um programa de consolidação de suas portarias normativas, a qual se completou em 2017. Trata-se de uma consolidação importante e necessária, mas um primeiro passo que prepararia para se proceder a revisão de seu conteúdo e isso não aconteceu.

[9] Artigo 17/19 da Lei Complementar n. 141, de 2012.

[10] Há projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional. Necessário ainda pensar em consolidar as leis federais num código sanitário para fortalecer o direito à saúde e seu campo de estudo, o direito sanitário.

*Lenir Santos é advogada, professora colaboradora do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

Fonte: Boletim de Noticias Conjur