O vírus rastreado. Pesquisa liderada por duas pesquisadoras é referência internacional

As pesquisadoras Jaqueline Goes e Ester Sabino lideram maior levantamento sobre o Sars-Cov-2 no Brasil. Ao todo, 102 cepas diferentes do vírus entraram no Brasil, mas só três delas se espalharam entre a população. Elas também foram responsáveis pelo sequenciamento do vírus que infectou o primeiro paciente no país diagnosticado por aqui, o que foi anunciado em 26 de fevereiro.

Elas chegaram a esta conclusão depois de sequenciar 427 amostras vindas de 21 dos 27 estados do país. É o maior sequenciamento brasileiro do vírus causador da pandemia já realizado até agora. O trabalho também identificou em 90% dos sequenciamentos uma mutação que pode ter um papel fundamental na maneira como ele se espalha.

“É uma mutação que apareceu na Itália e parece ter aumentado a capacidade de transmissão do vírus”, afirmou a médica Ester Sabino, líder brasileira do Cadde (Centro de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus), uma parceria entre o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, com a Universidade de Oxford, no Reino Unido.

O levantamento mostrou ainda que, em São Paulo, as transmissões se mantiveram estáveis — ou seja, a curva se manteve reta — nos últimos dois meses, desde que começaram as medidas de distanciamento social. Resta agora saber qual o impacto da gradual reabertura.

Além de contar em detalhes a história da pandemia no Brasil, os achados mostram como o vírus se comporta entre a nossa população e podem mostrar quais são as melhores maneiras de conter sua expansão. “Ainda tem muito para ser provado, mas a gente tem que continuar monitorando o vírus para ver se acontece algo que tem implicação nas coisas que fazemos, como diagnóstico e vacina”, diz Ester.

Uma maratona

O estudo é resultado de uma “maratona genética”. O termo é uma brincadeira que a pesquisadora Jaqueline Goes faz para descrever a maneira como ela e equipe trabalham para conseguir levantar o maior número de dados em um curto período de tempo. Ela foi deflagrada no início de março, depois do sequenciamento da primeira amostra de vírus, realizada em 48 horas, o que ganhou destaque pela rapidez.

Elas contam que o feito não é incomum entre a equipe e que elas já estavam preparadas para isso. Em janeiro, embora estivessem dedicadas a análises de um outro microorganismo que começava a fazer vítimas no Brasil, o arenavírus, causador de febre hemorrágica, já estavam em alerta.

Ester soube dos primeiros casos na virada do ano, pelo Twitter e por informes da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Fiquei bastante preocupada já no início porque o vírus estava se espalhando muito rapidamente. Muitos colegas achavam que ele não chegaria aqui, mas eu já estava assustada”, lembra.

Além de compartilhar da preocupação, Jaqueline tinha outra: conseguir os insumos necessários para fazer as testagens assim que os primeiros casos chegassem no país. Para isso, começou a fazer cotações e a encomendar os primers (testes) específicos para coronavírus. “Era Carnaval, as pessoas estavam na rua e eu fiquei apreensiva: será que vai chegar?”. Chegou.

“Quando decidimos continuar sequenciando, trabalhamos muito, ficamos noites no laboratório. Depois a equipe começou a demonstrar cansaço, não dava para manter a rotina de virar a noite, voltar para casa, dormir só um pouquinho. Então, diminuímos o ritmo, mas estabelecemos metas semanais. O trabalho que concluímos faz um rastreamento da epidemia em todo o país, mostra o comportamento do vírus e suas consequências para nossa população.”

Currículos de estrela

O desempenho da dupla ganhou um destaque que elas não esperavam. “Eu nunca dei tantas entrevistas na vida. Não esperava que seria assim”, diz Ester, que tem uma carreira de mais de três décadas cheia de passagens importantes. Ela se formou em medicina em 1984 e, em seguida, começou a carreira como pesquisadora, realizando estudos com HIV. Também realizou trabalhos com doença de Chagas e arbovírus, causadores de dengue, Chikungunya e Zika. Entre os anos 2015 e 2019, foi diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP.

É o trabalho com arbovírus que une Ester a Jaqueline, cuja carreira começou mais recentemente. Ela se formou em biomedicina em 2012. Durante o doutorado, concluído no ano passado, fez estágio na Universidade Birmingham, no Reino Unido, e desenvolveu protocolos de sequenciamento de genomas do vírus zika. Agora está desenvolvendo sua pesquisa de pós-doutorado. No Cadde, a dupla acompanha a evolução dos arbovírus. A urgência da pandemia acabou incluindo o Sars-Cov-2 no programa, que agora realiza também os testes com o vírus.

“Já tínhamos feito alguns trabalhos de relevância com a mesma tecnologia usada agora e com muito mais amostras. Cobrimos o surto de zika, por exemplo, no nordeste em 2016, o de febre amarela no sudeste, em 2017 e 2018. Mas a situação do coronavírus chamou atenção para a importância do nosso trabalho”, afirma Jaqueline.

Representatividade negra

O destaque do trabalho da dupla tem tido um efeito que vai além da ciência. Jaqueline, que é negra e nordestina, se tornou exemplo das lutas feminista e racial. “Inicialmente eu não tinha noção da força que isso tem em termos de representatividade”, diz ela, que confessa não estar mais dando conta de administrar seus perfis em redes sociais, tamanha quantidade de mensagens.

O assédio se intensificou nas últimas semanas, desde que o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, deflagrou manifestações em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Embora esteja acostumada a falar sobre o assunto no círculo social em que vive, entre familiares e amigos — “porque no Brasil ainda tem gente que insiste em dizer que não tem racismo” —, nos últimos tempos ela diz que tem preferido fazer um movimento diferente.

“Tenho tentado dar visibilidade a pessoas que eu acredito ter uma pauta muito mais teórica, com referências sobre isso, que é uma coisa que eu não consigo ter nesse momento”, diz. “Eu sei que tem pessoas que estudam racismo há muito tempo no Brasil, pessoas pretas que conhecem autores e autoras negras, que fizeram papel importante.”

Ainda assim, ela não guarda suas críticas e análises sobre o momento atual. “Não é uma atitude de branco salvador, que abre espaço na rede social para o preto falar, que vai mudar o Brasil. Precisamos passar por muita coisa ainda para conseguirmos alcançar, pelo menos, um nível de consciência da existência do racismo. É preciso ter representatividade, é preciso abrir oportunidade para as pessoas pretas ascenderem no país, porque, só aí, vamos mudar a estrutura social. Isso, sim, pode acabar com o estigma.”

Fonte: Universia – Leia a reportagem no original aqui.
Publicado em 16/06/2020