Gilead: o Brasil excluído no enfrentamento da pandemia
- 21/05/2020
- Ewerton Fenafar
- AÇÕES
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A história se repete em ciclos! A farmacêutica americana Gilead, uma empresa predadora, exclui o Brasil de um potencial tratamento da Covid-19. Esperada por muitos, visto ceticamente por outros, essa postura tem, surpreendentemente, a ajuda de organizações brasileiras de indústria farmacêutica e propriedade intelectual. Leia no artigo de – por Jorge Bermudez e Achal Prabhala.
Em artigo recente, alertamos que qualquer tratamento potencial para a Covid-19, se fosse produto novo, protegido por patente, teria o acesso dificultado nos países de renda média – como já ocorre em outros casos, que levaram às licenças voluntárias para um pool de patentes de medicamentos. Essa dificuldade de acesso pode acontecer, apesar da solução multilateral do pool de patentes de tecnologias relacionadas à Covid-19 solicitado pela Costa Rica e atualmente sob o escrutínio da Organização Mundial da Saúde.
A trilha de senso humanitário da Gilead é bem conhecida. Como detentora da patente do sofosbuvir, o primeiro antiviral de ação direta licenciado (DAA), eficaz na cura da hepatite C, lançou o medicamento no final de 2013 ao custo de US$ 84 mil por tratamento (12 semanas ou 84 dias). Foi chamado, assim, de pílula de mil dólares. Após reclamações e falta de acessibilidade não apenas de países pobres, a Gilead anunciou em setembro de 2014 contratos de licenciamento com sete fabricantes de genéricos indianos, oferecendo um preço de acesso de US$ 900 por tratamento, em um escopo de 91 países de baixa e média renda, cobrindo quase 100 milhões de pessoas, mas excluindo 49 milhões em países de renda média (ver aqui e aqui).
Essa exclusão alcançou o Brasil, onde foi estabelecida uma negociação bilateral, trazendo o preço para cerca de US$ 6 mil por tratamento. Como as reivindicações de patentes da Gilead estavam em avaliação no INPI, escritório de patentes no Brasil, um acordo de cooperação técnica envolvendo a Fiocruz e um consórcio de empresas privadas nacionais desenvolveu a versão genérica do sofosbuvir. No entanto, as demandas judiciais da Gilead bloquearam a possibilidade de que essa versão mais barata e bioequivalente abastecesse o sistema nacional de saúde (SUS) (ver aqui).
Atualmente, o Brasil enfrenta o dilema de ter ou não acesso a um dos medicamentos em potencial que podem ser utilizados no tratamento do Covid-19, o Remdesivir da Gilead, um dos produtos submetidos a vários ensaios, incluindo o Solidarity Trial da OMS. O Remdesivir acaba de receber a Autorização de Uso Emergencial pelo FDA dos EUA para o tratamento da Covid-19, permitindo um uso mais amplo no tratamento de pacientes hospitalizados. Essa autorização, com base na gravidade da doença dos pacientes, foi anunciada pela Gilead em 1º de maio de 2020.
Considerando que a Gilead está registrando patentes de Remdesivir em quase 70 países para garantir o monopólio, eles acabaram de anunciar que assinaram o que chamam de “acordos de licenciamento voluntário não exclusivos, com cinco fabricantes de medicamentos genéricos baseados na Índia e no Paquistão, para expandir ainda mais o suprimento de Remdsivir”. A Cipla Ltd., Ferzsons Laboratories, Hétero Labs Ltd., Jubilant Lifesciences e Mylan estão autorizadas a fabricar Remdsivir para distribuição em 127 países com um escopo geográfico definido pela Gilead, principalmente de renda baixa e médio-baixa e estabelecendo seus próprios preços. Como previmos em nosso artigo recente, já mencionado, a menos que outras medidas sejam tomadas – caso de países como Canadá, Alemanha, Israel, Chile, Peru e Equador –, o Brasil pode ficar preso na armadilha da Gilead de exclusão do monopólio. Com essa visão, um grupo suprapartidário de deputados submeteu um projeto de lei ao Congresso (PL 1462/2020), alterando a atual Lei da Propriedade Industrial; o objetivo é propor licenças compulsórias automáticas para tecnologias relacionadas ao Covid-19, justificadas pela declaração nacional e/ou global de emergência de saúde devido à pandemia.
Atualmente, o Brasil enfrenta o dilema de ter ou não acesso a um dos medicamentos em potencial que podem ser utilizados no tratamento do Covid-19, o Remdesivir da Gilead
Pareceria que, no interesse de garantir o acesso e salvar vidas, seria naturalmente esperado discutir, aprovar e implementar essa proposta, apoiada pelo Conselho Nacional de Saúde e recebendo forte apoio internacional. No entanto, ficamos chocados ao ler as reações que se seguiram à apresentação do projeto de lei. A Interfarma, representação corporativa de empresas farmacêuticas multinacionais, reagiu listando os benefícios do arcabouço legal atual da propriedade intelectual no Brasil, promovendo a inovação e garantindo benefícios legais em diferentes segmentos industriais (ver aqui). Mencionando a alegação da IFPMA [Facts and Figures 2017] de que cada novo produto inovador no mercado corresponde ao investimento de um bilhão de dólares, 6 mil tentativas, 400 pesquisadores e uma média de dez anos, eles exortam a necessidade de proteger e incentivar a indústria farmacêutica para garantir o desenvolvimento de produtos e o bem-estar das pessoas. O posicionamento termina com a chamada para não enfraquecer o sistema da propriedade industrial e, portanto, não concordando com a proposta incluída no projeto de lei. Nada estranho, vindo deles.
A ABPI [Associação Brasileira de Propriedade Intelectual] veio com documento na mesma linha, concluindo que o projeto de lei, assim como os que o originaram, desconsidera a legislação vigente e os acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, trazendo também insegurança. Esse artigo também não é uma surpresa.
Pareceria que, no interesse de garantir o acesso ao Remdesivir e salvar vidas, seria naturalmente esperado discutir, aprovar e implementar a proposta do PL 1462/2020, apoiado pelo Conselho Nacional de Saúde e recebendo forte apoio internacional. No entanto, ficamos chocados ao ler as reações que se seguiram à apresentação do projeto de lei
Por outro lado, uma nota técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão analisa o Projeto de Lei (PL 1462/2020), confronta os direitos individuais versus direitos coletivos, discute o Acordo Trips da OMC e os monopólios, a Declaração de Doha sobre o Acordo Trips e a saúde pública, concluindo que, sem lugar a dúvidas, o PL 1462/2020 está em absoluta conformidade com nossa Constituição Federal, não apresenta disfunção com nossa atual Lei de Propriedade Industrial e está em conformidade com questões internacionais relacionadas a direitos de propriedade intelectual e suas interações com a saúde pública (ver aqui).
A surpresa, em termos, ficou por conta de uma Nota Técnica proveniente dos fabricantes privados nacionais, representados corporativamente pela FarmaBrasil, com argumentos frágeis e invocando organizações governamentais que ficariam encarregadas de lidar com uma visão estratégica da propriedade intelectual dentro da estrutura atual. A sentença final está se manifestando contrária a todos os projetos de lei propostos, alinhando-se, portanto, a outros opositores do licenciamento compulsório.
Devemos considerar que o atual governo está negando a seriedade da pandemia devida ao coronavírus. O presidente da FarmaBrasil fez parte recentemente de um grupo de 15 empresários que se uniram ao presidente da República em uma visita ao STF, em 7 de maio passado (ver aqui), que tinha como principal objetivo reclamar da necessidade de continuar o distanciamento social /confinamento, que atualmente é uma medida mundial para a contenção da pandemia, e defesa da abertura do comércio, ignorando o fato de o Brasil já contar com mais de 12.400 mortes e 178.000 casos da Covid-19.
A história se repete em ciclos! Quais serão as lições aprendidas no Brasil e repassadas para nossas futuras gerações? Uma história de dolorosa resistência, compromisso com salvar vidas e garantir o acesso a todos? Ou teremos a ganância se superpondo à necessidade, negando a pandemia e deixando muitos para trás?
*Jorge Bermudez é pesquisador sênior da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Ministério da Saúde, Brasil. Foi membro do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Acesso a Medicamentos e atuou como diretor executivo da Unitaid, em Genebra, Suíça, entre 2007-2011.
**Achal Prabhala é membro da Fundação Shuttleworth e coordenador do projeto AccessIBSA, que faz campanhas para acesso a medicamentos na Índia, Brasil e África do Sul.
Fonte: Fiocruz
Publicado em 18/05/2020