Acesso a medicamentos e tecnologias na Covid-19: do panorama global às perspectivas nacionais

Em artigo, o médico, pesquisador da Ensp/Fiocruz Jorge Bermudez aborda como o acesso a tecnologias, em particular medicamentos, sempre esteve na pauta dos debates sobre saúde e os eixos que a Organizção Mundial da Saúde tem apontado para orientar a adoção de políticas públicas no âmbito dos estados nacionais. Ele traz essa discussão para o contexto da pandemia e as perscpetivas atuais dessa questão.

O acesso a tecnologias, com ênfase em medicamentos, sempre esteve em pauta nos debates sobre saúde, ou, pelo menos, muito intensamente nas últimas duas décadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem apontado quatro eixos fundamentais a esse respeito: a seleção racional e desenvolvimento de produtos; preços acessíveis a governos e consumidores; financiamento sustentável; e sistemas de abastecimento confiáveis, incluindo serviços públicos e privados.

Em que pesem diretrizes muito claras, as discussões sempre esbarraram nos dilemas do confronto entre saúde e comércio, enfrentando diversas barreiras ao acesso, entre as quais destacamos os preços elevados de produtos monopólicos, a segmentação de mercados, a falta de investimento em medicamentos para doenças relacionadas e perpetuadoras da pobreza e principalmente a dissintonia entre oferta e demanda.

Todos os problemas decorrentes das dificuldades em promover o acesso equitativo a tecnologias e romper as barreiras da iniquidade ficam mais evidentes em tempos de crise e mais ainda hoje, no enfrentamento da pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

Antes da deflagração da pandemia, a OMS já havia incluído a expansão do acesso a medicamentos como um dos dez desafios para esta década anunciados em janeiro de 2020, diante da constatação de que cerca de um terço da população mundial não tem esse acesso e de que o gasto com medicamentos é um dos maiores para os sistemas de saúde. Outras iniciativas relevantes e de caráter global incluem o relatório do Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em acesso a medicamentos divulgado em setembro de 2016; o Relatório da Comissão Lancet sobre medicamentos essenciais para cobertura universal de saúde, também de 2016; e a discussão sobre acesso a medicamentos e vacinas na Assembleia Mundial da Saúde em 2019 (documento A72/17), aprovando o denominado road map para o período 2019-2023.

Em que pesem diretrizes muito claras da OMS, as discussões sempre esbarraram nos dilemas do confronto entre saúde e comércio, enfrentando diversas barreiras ao acesso, entre as quais destacamos os preços elevados de produtos monopólicos, a segmentação de mercados, a falta de investimento em medicamentos para doenças relacionadas e perpetuadoras da pobreza e principalmente a dissintonia entre oferta e demanda

Com a Declaração de Emergência em Saúde Pública de interesse internacional pela OMS, em 30 de janeiro de 2020, uma série de iniciativas de caráter internacional foi imediatamente deflagrada. Cabe destaque para a reunião de ministros da saúde do G-20, em 19 de abril; a Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovando a Resolução A/RES/74/270 versando sobre solidariedade global para lutar contra Covid-19 e a Resolução A/RES/74/274 que ressalta a cooperação internacional para assegurar o acesso a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos para enfrentar a Covid-19 [ver aqui].

No âmbito da OMS, ressaltamos o lançamento da iniciativa ACT Accelerator (Access to Covid-19 Tools Accelerator) em 24 de abril, iniciativa estruturada pela OMS e líderes mundiais, contando com o apoio de mais de 40 países e tendo coletado mais de 8 bilhões de euros para o desenvolvimento e a produção de diagnósticos, medicamentos, tratamentos, testes e vacinas contra a Covid-19. Ainda no âmbito da OMS, a Assembleia Mundial da Saúde foi realizada pela primeira vez de maneira virtual durante os dias 18 e 19 de maio. O tema que dominou todas as discussões foi o enfrentamento à pandemia, sendo aprovada a Resolução WHA73.1 (Resposta a Covid-19). Essa resolução, além de reafirmar a relevância da Covid-19, que afeta desproporcionalmente países e populações pobres e mais vulneráveis, enfatiza a necessidade de se levar em consideração, identificar e prover opções no contexto do Acordo Trips da OMC e da Declaração de Doha sobre Trips e Saúde Pública, para impulsionar a capacidade de desenvolvimento, produção e distribuição necessários ao acesso equitativo e oportuno de produtos para combater a pandemia.

 Adicionalmente, foi lançada, em 29 de maio, sob a liderança do presidente da Costa Rica e do diretor-geral da OMS, uma iniciativa complementar, o C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool), objetivando que todas as vacinas, testes, diagnósticos, tratamentos e outras ferramentas na resposta ao coronavírus tem que estar disponíveis universalmente como bens públicos globais. Essa iniciativa é de caráter voluntário e fundamentado na solidariedade global, hoje contando com o apoio de mais de 35 países e constituindo uma plataforma tecnológica para o licenciamento voluntário de tecnologias.

Como fica evidenciado, há todo um movimento global intenso de solidariedade e busca de soluções para o enfrentamento da pandemia. Entretanto, temos que considerar que todos esses esforços têm que ser acompanhados de movimentos e compromissos nacionais capazes de interiorizar e incluir nos nossos marcos regulatórios as necessárias adequações ou até alterações legislativas. Por outro lado, iniciativas de caráter voluntário não necessariamente são universalizadas ou automaticamente atingem todas as populações mundiais. O confronto entre saúde e comércio tem sido cada vez mais evidente, mesmo nestes tempos de pandemia.

Como priorizar as necessidades mundiais na dualidade acesso x demanda diante da capacidade ou capacidades de produção vai ser sempre uma incógnita. Os sublicenciamentos e outras medidas de caráter voluntário não necessariamente cobrem aquelas populações mais necessitadas; o escopo geográfico proposto pela indústria detentora de patentes coloca a barreira da propriedade intelectual cada vez mais presente no dia a dia dos países, em especial naqueles de renda média.

Como fica evidenciado, há todo um movimento global intenso de solidariedade e busca de soluções para o enfrentamento da pandemia. Entretanto, todos esses esforços têm que ser acompanhados de movimentos e compromissos nacionais capazes de interiorizar e incluir nos nossos marcos regulatórios as necessárias adequações ou até alterações legislativas

O Brasil tem sido pródigo em contradições e em trilhar caminhos na contramão do mundo, com autoridades negando a gravidade da pandemia ou até promovendo aglomerações e relutando em seguir recomendações da OMS ou baseadas na Ciência, enquanto vemos uma curva ascendente e chegamos próximos ao milhão de casos e mais de 40 mil mortes, relaxando o isolamento e priorizando os negócios, na falsa dicotomia em que priorizar vidas com o distanciamento social acaba com a economia.

Mas o Brasil é maior do que seus governantes e temos tido propostas concretas que nos auxiliam na luta por assegurar a saúde como direito de todos e dever do Estado, conforme premissa de nossa Constituição.

Na defesa da saúde como direito, compartilhamos da luta por incluir uma PEC que assegure que o acesso a medicamentos seja considerado direito humano fundamental, proposta conduzida pela Frente Parlamentar em defesa da assistência farmacêutica, presidida pela deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA).

No que se refere a assegurar que todas as tecnologias utilizadas para o enfrentamento da emergência de saúde representada pela pandemia – sejam vacinas, medicamentos, diagnósticos, reagentes, dispositivos médicos, equipamentos de proteção individual, suprimentos e quaisquer outras tecnologias – tornem-se automaticamente objeto de concessão de licença compulsória por todo o período em que perdurar a situação de emergência de saúde pública, conforme já nos posicionamos em diversas oportunidades, louvamos o PL 1.462/2020, protocolado por 11 deputados de diversos partidos políticos no Congresso Nacional.

Em que pesem as restrições orçamentárias e o sufocamento das políticas públicas e do SUS impostas pela Emenda Constitucional 95/2016, esse mesmo SUS está sempre na linha de frente do combate à pandemia e na luta por melhores condições de saúde e de vida de nossas populações. Haveremos de resistir!

Jorge Bermudez é Médico, pesquisador da Ensp/Fiocruz; membro do Painel de Alto Nível em Acesso a Medicamentos do Secretário-Geral das Nações Unidas.

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz
Publicado em 15/06/2020